sexta-feira, 28 de março de 2014

  
   


Aí pelas Três da Tarde
 
Raduan Nassar
 

Nesta sala atulhada de mesas, máquinas e papéis, onde invejáveis escreventes dividiram entre si o bom senso do mundo, aplicando-se em idéias claras apesar do ruído e do mormaço, seguros ao se pronunciarem sobre problemas que afligem o homem moderno (espécie da qual você, milenarmente cansado, talvez se sinta um tanto excluído), largue tudo de repente sob os olhares a sua volta, componha uma cara de louco quieto e perigoso, faça os gestos mais calmos quanto os tais escribas mais severos, dê um largo "ciao" ao trabalho do dia, assim como quem se despede da vida, e surpreenda pouco mais tarde, com sua presença em hora tão insólita, os que estiveram em casa ocupados na limpeza dos armários, que você não sabia antes como era conduzida. Convém não responder aos olhares interrogativos, deixando crescer, por instantes, a intensa expectativa que se instala. Mas não exagere na medida e suba sem demora ao quarto, libertando aí os pés das meias e dos sapatos, tirando a roupa do corpo como se retirasse a importância das coisas, pondo-se enfim em vestes mínimas, quem sabe até em pêlo, mas sem ferir o decoro (o seu decoro, está claro), e aceitando ao mesmo tempo, como boa verdade provisória, toda mudança de comportamento. Feito um banhista incerto, assome em seguida no trampolim do patamar e avance dois passos como se fosse beirar um salto, silenciando de vez, embaixo, o surto abafado dos comentários. Nada de grandes lances. Desça, sem pressa, degrau por degrau, sendo tolerante com o espanto (coitados!) dos pobres familiares, que cobrem a boca com a mão enquanto se comprimem ao pé da escada. Passe por eles calado, circule pela casa toda como se andasse numa praia deserta (mas sempre com a mesma cara de louco ainda não precipitado) e se achegue depois, com cuidado e ternura, junto à rede languidamente envergada entre plantas lá no terraço. Largue-se nela como quem se larga na vida, e vá ao fundo nesse mergulho: cerre as abas da rede sobre os olhos e, com um impulso do pé (já não importa em que apoio), goze a fantasia de se sentir embalado pelo mundo.
 

Texto extraído do livro "
Menina a caminho", Companhia das Letras - São Paulo, 1997. pág.71.

Saiba mais sobre o autor e sua obra visitando "
Biografias".

sábado, 15 de fevereiro de 2014

Dona Diva e Seu guarda chuva Cor de Rosa

 

Eu encontrei ela. Ela me encontrou.

Uma mulher e seu guarda chuva cor de rosa. Vocês devem estar se perguntando: pessoas com guarda chuvas cor de rosa, evento comum no cotidiano da vida em dias de chuvas. Mas esta experiência foi particular no cinza da cidade. Inusitado e amoroso foi este encontro.

Estava eu, saindo do supermercado, onde em um dia de céu cinza, eu na minha abundancia sabedoria popular, olhei para o céu e pensava antes da sair de casa que dava tempo de ir ao supermercado e voltar antes da chuva cair. O fato é que a chuva caiu com gosto e desejo de chão. Isso não criou a sensação em mim de desacreditar na minha capacidade de ler a natureza, apenas reafirmou em mim, as capacidades das mudanças climáticas de fazer-me enganar em relação a uma profecia de hora para chover. Coisas da vida!

Voltando a saída do supermercado, estava eu lá, esperando a chuva passar, e olha que era água, linda de ver, viver e sentir. E é aí que entra a Dona Diva do guarda chuva Cor de Rosa. Ela se aproximou dizendo que assim como eu, ela iria esperar a chuva passar para seguir seu caminho, pois enxergava muito mal e corria o risco de cair e se machucar. Enquanto ela falava meu desejo era dizer:

- Por que a senhora não tira o óculos de sol, afinal o dia está escuro e os óculos podem limitar ainda mais sua visão.

Porém, imediatamente ela continuou a falar, e me perguntou:

- Quantos anos você acha que eu tenho?

Eu disse (perguntando) com muita generosidade:

- 65 anos?

Ela respondeu:

- Que boa você é menina! Tenho 86 anos. E sou animada, tenho 5 netos. Minhas filhas, graças a Deus, tiveram poucas crias. E o meu neto mais velho vai ter filho essa semana lá em Goiânia e serei bisa.

Eu disse:

- Que bom! Parabéns!

Ela disse:

- Minha filha, você é jovem. Tem 25 anos?

Eu sorri, de alegria é claro, e disse:

- Não, um pouco mais, só um pouco.

Então ela disse:

- Eu nunca erro em idades de mulheres. E só te digo que você tem que viver a vida com alegria e resguardos. Vá ao medico e faça exames todos os anos, quando tiver filhos, cumpra o resguardo, pois extravagância durante o resguardo, estraga a vida da mulher. Namore muito e tenha paciência. Estude, mas cuidado para não ficar doida de tanto ler, pois meu neto sofre dessa doença.

Enquanto ela falava as lágrimas já estavam descendo, mas tive a impressão de que ela não percebeu, pois os óculos de sol, eram realmente escuros para o momento.

No final da conversa,  já acolhidas e aconchegadas pelo guarda chuva cor de rosa, eu me despedi, dei um beijo em seu rosto cheiroso (sabe aquele cheirinho de pó de arroz que nossas avós usavam?) e fui saindo. Ela me chamou de volta e disse:

- Qual seu nome?

Eu disse meu nome. Ela disse:

- Nome da minha neta. Só que ela tem medo de chuva, você não tem?

Eu sorri e continuei meu caminho molhada com os pingos da chuva. Ela saiu devagar e ouvi ela dizendo: eu vou devagar até chegar, logo eu chego!

Naquele dia, com a mesma intensidade que agradeci aos Deuses e Deusas das águas por enviarem as chuvas, agradeci por encontrar guarda chuva cor de rosa e oxalá a vida nós de acolhida com cheiro de pó de arroz e tons de rosa.